18/02/2007

Sob aquela soleira sopra um vento gélido (Parte I)

A Câmara Municipal de Lisboa, em conjunto com o Serviço Municipal de Protecção Civil e a Cruz Vermelha Portuguesa, tem tido no terreno um “Plano de Contingência para a População de Rua Perante Vagas de Frio”, com equipas a acompanhar os sem-abrigo durante todo o ano. No pino do Inverno “a sua acção é reforçada, nomeadamente no que se refere à sinalização e satisfação das necessidades mais prementes desta população, reduzindo o impacto das variações climatéricas, designadamente em ocasiões de arrefecimentos acentuados que não sejam tecnicamente considerados como vagas de frio”.
Considera-se uma vaga de frio quando há, de acordo com critérios internacionais, “a previsão de dois ou mais dias com temperatura mínimas durante o dia de 4 graus ou menos, tendo ainda em consideração o efeito de arrefecimento corporal provocado pelo vento (efeito designado Wind Chill)”, cabendo ao Instituto de Meteorologia alertar as autoridades para a previsão de uma vaga de frio. Aliás, o que se tem verificado nos últimos dias.
Quem passa na rua e observa alguém a dormir num passeio enrolado entre mantas e papelão desconhece que o mundo dos sem-abrigo é composto por vários grupos que pouco convivem entre si. Há quem passe por eles e desvie o olhar, comentando que cada um faz a cama onde dorme. Porém, a entrada na miséria vai empurrando as pessoas para um beco sem saída que conduz à degradação. Periodicamente são relatadas ocorrências de agressões aos sem-abrigo. O caso mais mediático foi há um ano o do transexual brasileiro Gisberta.
Segundo o Correio da Manhã *, já este mês foi o de “uma idosa que costuma dormir no Príncipe Real que anda a pedir, a malta nova sabe que ela tem por hábito juntar dinheiro e, volta não volta, estão a assaltar a mulher durante a noite. É revoltante e nós não podemos fazer nada para a defender. Senão, nos dias seguintes, andam atrás de nós a ameaçar-nos de pancada” (…) “é preciso que se diga que estes putos não são malta da rua, porque nós, na rua, temos as nossas discussões mas não esse tipo de actos mais próprios de animais”, acrescenta o homem, que dorme na rua das Janelas Verdes. Dos tempos de rua recorda o medo que sempre o acompanhou. “Há sempre a ideia de que, a meio da noite, pode chegar junto de nós um grupo de miúdos bêbedos e desatar a bater-nos”, disse. “Uma das soluções encontradas para combater estes medos é dormirmos uns perto dos outros, em grupos que variam entre as três e as cinco pessoas. Se houver algum problema já são mais a gritar e a defenderem-se uns aos outros”.
Outro truque é dormir em locais expostos, onde mesmo de noite circulem pessoas. Por exemplo, junto à estação de Santa Apolónia, ou no Terreiro do Paço. Nesta última praça, debaixo das arcadas dos Ministérios, dormem cerca de 30 pessoas. Aqueles que nada têm alinham-se, lado a lado, de forma ordenada, demonstrando como é fundamental para o entendimento e aceitação mútuos não incomodar os outros.
Há quem viva na rua há 15 anos e já nem tenha documentos. Tal como a esmagadora maioria dos sem-abrigo, uns porque foram roubados ou os perderam. Outros acabam por vender o bilhete de identidade para ser falsificado e enviado para o estrangeiro. Há quem tenha sido assaltado várias vezes. “Deixo o saco com as poucas coisas que tenho ao meu lado e pronto, quando acordo já não tenho nada. É o pão-nosso de cada dia”, adianta. Quando a um jovem casal, ela já grávida, perguntaram se em vez de dormirem ao frio no Terreiro do Paço por que não iam para um albergue da Câmara, a resposta saiu célere: “Você já lá foi? Aquilo é uma confusão desgraçada. É só drogados. E depois fazem muito barulho. Aqui estamos melhor”.
“No Terreiro do Paço há horários para tudo, de Inverno só podemos vir para aqui depois das 19h30, quando as pessoas começam a abandonar a cidade. Levantar também é cedo. A partir das 7h00 já temos aqui a polícia a bater-nos nos pés e a dizer ‘está a levantar’. Depois vêm os carros da limpeza para lavar o chão”. “Os cobertores, que agora com o frio tanta falta nos fazem, se não os conseguimos levar vão para o lixo”. Diariamente, por volta da meia-noite, chega ao Terreiro do Paço alguma ajuda composta por sandes, leite e fruta.
Refere ainda o DNotícias de 12 de Fevereiro que “de cada vez que o Inverno desce sobre a cidade, eles deixam as arcadas dos prédios, os vãos de escada e os bancos de jardim. Percorrem a Avenida Almirante Reis, atravessam a Praça do Martim Moniz e entram no Hospital de São José, em Lisboa. Não vêm de ambulância nem trazem doenças. São sem-abrigo e procuram apenas um lugar aquecido para passar a noite. É hábito de tantos anos, que médicos, enfermeiros, auxiliares e porteiros conhecem bem estes falsos doentes que recorrem às urgências do hospital. Chegam perto da meia-noite e adormecem nas salas de espera, nas casas de banho, debaixo das macas ou nos corredores do banco de urgência. Só saem pela manhã, quando são expulsos pelas esfregonas das mulheres da limpeza”.
Segundo explicam os mendigos, Lisboa está dividida por zonas. Os toxicodependentes frequentam sobretudo a zona dos Anjos e da Almirante Reis. Por sua vez, os estrangeiros, na maioria romenos e ucranianos, pernoitam na área do Príncipe Real. As vítimas do álcool escolhem a zona do Mercado da Ribeira e de Santa Apolónia. No Terreiro do Paço a maioria dos sem-abrigo é composta pelo que os especialistas definem como a nova geração…
Nova geração de ‘mendigo na hora’? Modernidades? (continua).


* IN: Sem-abrigo : vítimas de violência, por João Saramago com André Pereira www.correiomanha.pt/noticia.asp?id=229810&idselect=228&idCanal=228&p=200

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